No meu primeiro dia de repescagem, dei a sorte de poder assistir a dois filmes da Apresentação Especial. Priorizei, esse ano, filmes inéditos, e sofri um pouco em ter que excluir tantos filmes que não conhecia de Marco Bellocchio, Paul Verhoeven, William Friedkin e Jim Jarmush. Essa foi uma maneira gostosa de me redimir. Comecei o dia com A Hora da Religião do Bellocchio, e terminei com O Quarto Homem, de Verhoeven. Provavelmente não por coincidência, ambos tocam (mais ou menos) em religião e falta ou excesso de fé, o que eu achei bastante coerente e curioso.
A HORA DA RELIGIÃO (L’ORA DI RELIGIONE, 2002)
Ernesto é um reconhecido pintor e assumidamente ateu. Sua mãe, morta por seu irmão enfermo anos atrás, está no processo de ser canonizada, e o assistente do Cardeal procura Ernesto para resolver algumas questões envolvendo sua vida e morte. Enquanto boa parte da família de Ernesto luta pela efetivação do processo, buscando status financeiro e prestígio, Ernesto reluta por questões éticas.
O filme, vencedor do prêmio do júri ecumênico do Festival de Cannes, retrata uma história relevante e provocativa de maneira contida, discreta. Em meio a tantas intenções nefastas e comportamentos questionáveis, Ernesto se mantém, no decorrer de sua jornada, invicto, cheio de ética, convicção e uma preocupação genuína tanto com a formação de caráter de seu filho quanto com a pouca saúde mental que resta ao seu irmão matricida. Se ele não está imune às tentações terrenas, inclusive, prova-se ainda mais humano e coerente em relação à sua falta de crenças.
Há um problema de ritmo, especialmente no primeiro ato, um pouco maçante. No decorrer do segundo e terceiro atos, o filme torna-se mais dinâmico, especialmente com o surgimento de personagens cruciais para o desenvolvimento da trama e do protagonista: sua tia, seu irmão e a professora de religião de se filho. A trilha sonora e a fotografia são pontos altos. De estética que vai ao encontro da temática religiosa católica, as músicas anunciam, com alarde, o que está por vir, ao passo que os silêncios sinalizam, com antecedência, momentos de calmaria. Conforme a história avança para a obscuridade, tornam-se mais frequentes as cenas noturnas e os ambientes pouco iluminados, com sombras severas, e as notas musicais tornam-se mais graves. Embora não seja esteticamente marcante, o filme é bem sucedido não apenas pela polêmica abordada, mas por fazer isso de maneira muito elegante.
O QUARTO HOMEM (DE VIERDE MAN, 1983)
Gerard é um escritor católico que se relaciona com homens e mulheres e luta sem muita determinação contra uma dependência alcoólica. Em viagem para a Alemanha para uma palestra, é recebido por Christine, com quem se envolve sexualmente. Depois de passar alguns dias ao seu lado, Gerard descobre que ela é viúva de três homens que morreram em acidentes suspeitos, e teme ser o quarto homens morrer.
A sequência inicial é elucidativa: cenas de uma aranha tecendo sua teia e capturando e preparando suas presas para serem devoradas. O filme é cheio de simbolismos e metáforas que ora servem apenas ao espectador, ora servem ao protagonista em sua elaboração de uma tese fundada, mesmo que um tanto supersticiosa. Paul Verhoeven trabalha com competência e equilíbrio os diversos elementos do filme: gore, erotismo e humor. Ao tratar o grotesco de forma cômica e explorar o sexo sem nenhum pudor, cria um estilo próprio, que funciona bem. A referência breve a Um Corpo que Cai em uma cena próxima ao final é um toque divertido.